É preciso ter muito pouco amor ao negócio para chamar Boi-Cavalo a um restaurante. E é preciso ter ainda menos amor ao carro para ir a guiar até Alfama. Tirando estes dois pequenos detalhes, ide em paz e que a fome vos acompanhe.
Este é um dos restaurantes mais criativos e irreverentes a que eu fui nos últimos tempos. Aqui toda a comida tem um toque diferente, original, imprevisível. E é isso que mais me fascina quando desloco os meus seis torneados abdominais para jantar fora. O resto – o ambiente, o barulho, o conforto – é secundário quando chegamos a um sítio onde a comida nos deixa de boca aberta (não de fome, mas de espanto!).
A ementa
A originalidade começa na filosofia do restaurante. No Boi-Cavalo não tem entradas, pratos do dia e sobremesas. Tem 11 pratos que mudam regularmente e que não obedecem a uma quota estilo igualdade de géneros. Por exemplo, quando nós lá fomos, havia duas sopas, no dia seguinte pode não haver nenhuma. A desvantagem é que a variedade não é grande; a vantagem é que o empenho é gigante. Em vez de estarem a pensar em 30 pratos ao mesmo tempo, no Boi-Cavalo os cozinheiros colocam toda a sua atenção em 11 cuidadosas combinações de ingredientes. E o resultado é, no mínimo, surpreendente.
O couvert
Se quiser couvert (€4,50), tem de o pedir: é um dos 11 pratos da ementa. No entanto, não hesite dois segundos. Nós hesitámos e acabámos a comer o couvert depois do primeiro prato. O que nos chegou foram três tipos de pão consistente – uma fatia grossa de pão branco, outra de mistura e uma última de pão escuro (consistentes mas um pouco grossas demais) – e umas finíssimas e deliciosas tostas com azeite. A acompanhar vieram duas manteigas: uma deliciosa e inesperada manteiga de sardinha e uma menos arrojada manteiga de noz. Eu adorei a manteiga de sardinha: sabe claramente a peixe e tem um toque salgado a mar. Pode parecer estranho, mas eu entranho. E, se esquecer os preconceitos estilo “ai que nojo, sardinha com manteiga!”, vai ver que também vai adorar. Para compor o couvert, veio ainda uma emulsão de azeite que basicamente é um suave creme de azeite temperado por cima.
Os pratos
Em relação aos outros pratos, têm todos mais ou menos as mesmas quantidades, mas os preços dos pratos principais são bastante mais baratos do que se pagaria noutro restaurante com este nível.
Eu pedi uma sopa de couve-flor que foi das melhores sopas que já comi. E convém esclarecer que, para mim, a couve-flor não é mais do que um repolho com um curso superior. No entanto, aqui a couve-flor é absolutamente divinal. Primeiro, vem num creme tão suave como a espuma numa festa do Kiss, no Algarve. Depois, leva requeijão de Seia, o que lhe dá o toque especial que faltava. E, por cima, ainda tem um fino crumble feito de pão frito, um pouco de beterraba picada e umas consistentes ovas de lumpo que quase explodem de sabor a cada trincadela. E é assim que uma simples sopa de couve-flor se torna um prato espectacular.
A minha prezada Mulher Mistério optou por um creme de bacalhau também muito suave – mas ligeiramente mais espesso do que a minha sopa – com um fantástico grão frito e um bom tomate assado. Não quero estar aqui a vangloriar-me mas a minha sopa dava-lhe 20-0 – parecia o Mundial de râguebi.
Na segunda fase do jantar, mais uma estrondosa vitória para a ala masculina do casal. Eu pedi um mirabolante lombelo de boi (€10,50), que é o músculo que está ao lado do lombo. Além de ser muitíssimo macio e saboroso, vinha com duas deliciosas tiras de farinha de arroz, estaladiças e leves – parece algodão frito. Mas o melhor foi o que veio ao lado – um extraordinário creme de ovo feito com a gema e caldo de carne. O resultado parece o de uma gemada mais espessa, consistente e salgada. O ideal é ir molhando a carne, mal passada e suculenta, neste delicioso acompanhamento.
Ela optou por uns secretos de porco ibérico com feijoca esmagada e uns chips de castanha (€11). A carne estava saborosa e estaladiça, a feijoca (enormes feijões brancos) estava muitíssimo bem cozinhada e deixava na boca um magnífico puré com vários aromas, mas o melhor de tudo foram os chips de castanha. A castanha é cortada em fatias muito fininhas e depois frita. O resultado são minúsculos e crocantes chips que me deixaram a aguar durante metade do jantar.
As sobremesas
Antes de começar, mais uma vez, a olhar de lado, com esse sobrolho franzido, para a quantidade extravagante de comida que ingerimos, deixe-me pedir à mesa para fazer a defesa da nossa honra: as quantidades não são grandes (ok, o prato Dela era um pouco mais pesado do que o meu, graças à feijoca, mas Ela aguenta bem…). Por isso, ainda houve espaço para duas óptimas sobremesas.
É claro que optámos por dividir as duas escolhas. Primeiro, comemos um bolo de azeite com espuma de queijo de cabra e molho de passas (€6). O bolo vem escondido dentro da espuma, leva o molho por baixo e ainda um biscoito de amêndoa por cima. Toda a apresentação é maravilhosa, mas eu gostei menos do sabor do bolo de azeite do que Ela.
Preferi claramente a segunda opção: uma mousse espessa de chocolate Valrhona (€6,50) que era qualquer coisa de antológico. A Valrhona é uma soberba marca de chocolate francês. Feito de cacau plantado pela própria marca na Venezuela e na República Dominicana, tem tanto de cremoso como de delicado. O sabor a cacau é intenso sem, no entanto, se tornar desagradável. A mousse vinha pouco doce, com um torrão de chocolate por cima e um magnífico creme de laranja por baixo, o que ajudava a desenjoar qualquer excesso da mousse.
O ambiente
Agora começam os defeitos. A sala é fria, as paredes são de mármore e as mesas e cadeiras são de madeira escura e dura. Por isso, o ambiente também não é muito mais quente. Nós fomos num dia com pouca gente, o que não ajudava a aquecer nada. E a música – entre o estilo electrónico e o psicadélico – levou-me a acabar a noite agarrado a uma caixa de Ben-u-rons.
O serviço
Se este barulho já era desagradável, então o que vinha da cozinha era uma catástrofe. No princípio do jantar, fomos inundados pelos tachos a bater, a água a correr e os empregados a conversar. No final, tivemos de assistir a uma conversa entre o chef e um cozinheiro sobre o que deve ser o profissionalismo num restaurante. Eu compreendo que o facto de a cozinha estar aberta para a sala tem destes inconvenientes, mas é nestas situações que convém conter as discussões pelo menos enquanto os clientes estão na sala.
De resto, a comida veio em poucos minutos e a empregada de mesa foi sempre simpática e esclarecedora.
As crianças
Não tem menu infantil. O que há são mesmo aqueles 11 pratos. Hoje, se calhar, já serão outros 11.
O bom
A originalidade da ementa
O mau
O ambiente e o barulho dos empregados a discutir
O óptimo
A comida, especialmente a sopa de couve-flor, o lombelo e a mousse de chocolate – basicamente quase tudo
Um óptimo jantar para si onde quer que a originalidade esteja,
Ele
fotos: boi-cavalo; casal mistério
Nota: Todas as despesas das visitas efetuadas pelo Casal Mistério a restaurantes, bares e hotéis são 100% suportadas pelo próprio Casal Mistério. Só assim é possível fazer uma crítica absolutamente isenta e imparcial.
Ainda bem que gostaram. É pena terem-me apanhado a dar um puxão de orelhas, mas garanto-vos que (felizmente) é raro ter que os dar. Infelizmente, é como dizem, a cozinha aberta é ruidosa e pode tornar-se desagradável para as mesas que lhe estão mais próximas.
Obrigado,
Hugo Brito (boi-cavalo)
Olá, Hugo
Antes de mais, muito obrigado pelo seu comentário.
Gostámos mesmo muito – tanto da criatividade como do cuidado com que os pratos são preparados. Hoje, depois das 19h30, vamos falar do Boi-cavalo na Rádio Comercial.
Parabéns,
Ele
De facto a música… quem se lembraria daquilo. Carta de vinhos sofrível e a sala fria. Caro para dois pratos por pessoa uma sobremesa e um vinho.
Mas realmente aquele punk rock em fundo não tem nada nada a ver.