a nossa aventura no beco cabaret gourmet, o restaurante mais surpreendente de josé avillez

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    À minha esquerda um grupo de quatro homens comenta e ri-se com o nervoso miudinho típico de quem acha que acabou de entrar no Elefante Branco dos restaurantes Michelin; à minha direita, um grupo de casais cinquentões, de camisa branca e blazer azul escuro, fala espalhafatosamente como se tivesse acabado de sair directamente do T-Clube, em 1992; à minha frente, um homem totalmente careca, de fato escuro e barba hipster, olha para toda a gente com um ar sério e impenetrável – é o anfitrião do Beco Cabaret Gourmet, o novíssimo restaurante de José Avillez.

    Na verdade, o Beco não é bem um restaurante. É um espectáculo de música e dança com um óptimo jantar a acompanhar. Por isso, se espera vir para aqui conversar calmamente, num tête-à-tête romântico, o melhor é cancelar já a reserva e tentar poupar os €260 do jantar duplo sem bebidas incluídas.

    O Beco não é barato, o que significa que convém perceber muito bem o que isto é, antes de se atirar para esta experiência de cabeça fresca e carteira cheia.

     

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    O ambiente

    Grande parte do ambiente é dado pelos empregados – a começar pelo anfitrião de barba que, além de nos receber à porta, apresenta o espectáculo, canta e dança irrepreensivelmente. Todas as empregadas estão vestidas de encarnado com um enorme decote nas costas que mostra uma parte do soutien da mesma cor. Os empregados do bar ostentam orgulhosas barbas capazes de ofuscar a do próprio António Variações. E as bailarinas andam pela sala de corpetes anos 20, meias de renda e saltos altos.

    No entanto, não espere nada que sequer se aproxime do striptease. Há veludos, há rendas, há dourados, mas não há varões nem outras ousadias excessivas. De resto, toda a decoração ajuda a recriar o ambiente de cabaret. Numa ponta da sala, está uma parede com uma gigantesca pintura de uma pinup; na outra, está um pequeno palco com um espelho e uma cortina bordeaux de veludo. Nos lados, encontra dois nichos forrados a papel de parede: do lado direito, um bengaleiro antigo, com várias bengalas e chapéus; do esquerdo, um tocador azul claro cheio de pérolas e luzes.

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    Tudo isto está escondido no fundo do Bairro do Avillez. Tem de atravessar os dois restaurantes que abriram no Verão passado (e aos quais já fomos aqui) e, só na parede do fundo, é que vai encontrar uma estante com livros, cachimbos, etc.. É por trás desta estante que está o Beco.

    Junto à estante, deverá ser recebido pelo tal anfitrião de barba que lhe indica o caminho para o restaurante.

    – Boa noite, estão curiosos? Prontos para o mistério?

    O “mistério” é manifestamente exagerado. Realmente, dizem-lhe que não é permitido gravar nem tirar fotografias, mas toda a gente fotografa e os empregados até se oferecem para ajudar; o menu não é revelado antes do jantar, mas tem variado muito pouco desde que abriu; e, no final, pedem-lhe que não desvende nada do que ali se passou, mas o que se passa é só um espectáculo de música e dança. Não é que o Beco não seja uma experiência fantástica e única em Portugal – mas chamar-lhe misterioso é como chamar discreto ao José Castelo Branco.

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    O serviço

    Mal chega, oferecem-lhe uma flûte de champanhe – e, quando digo “oferecem”, não é liberdade retórica porque, de facto, não veio na conta final. 

    Depois trazem-lhe uns guardanapos ainda quentes e marcados com bâton para os homem e com… batôn para as mulheres. Eu sei que podia haver uma atenção ligeiramente mais feminista aqui, mas o Beco pretende recriar os cabarets dos anos 20 e não a Plataforma Maria Capaz.

    A partir do momento em que entra na sala do restaurante, não vai conseguir passar mais de três minutos sem ter contacto com um empregado. Seja a servir bebidas, a levantar os pratos, a trazer a comida, a perguntar se está tudo bem, eles são como o Santana Lopes – andam sempre por aí. O serviço é rápido, eficaz e muitíssimo simpático. Além disso, os empregados dançam e sobem ao palco, o que faz deles uma peça fundamental em toda a experiência.

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    O espectáculo

    Para lá de todo este ambiente Moulin Rouge ligeiramente mais púdico, há ainda música e dança ao longo do jantar. O anfitrião sobe ao palco, no início, e faz uma apresentação animada do espectáculo. Com ele, há mais duas bailarinas que vão dançando e cantando ao longo da noite. No total, são quatro momentos musicais muitíssimo bem interpretados ao estilo do filme Chicago.

    Além da música, há ainda mais um homem de barba (eu sei, parece obsessão, mas a barba é quase regra no Beco) que se apresenta como mentalista e que se vai sentando, de mesa em mesa, para fazer truques com cartas e adivinhar aquilo em que os clientes estão a pensar. Não sei se por falta de interesse neste discreto e sossegado casal ou se por distracção, infelizmente não veio à nossa mesa, o que deixou a minha querida e prezada Mulher Mistério numa inconsolável desilusão – tinha apostado comigo toda a sua herança como o homem ia adivinhar quem nós éramos.

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    O jantar

    Ah, é verdade, no meio de tanta coisa, também há comida. Não é o mais importante, mas há e é quase toda deliciosa.

    Para mim, há apenas um único detalhe a apontar: José Avillez parece estar a tornar-se um sério concorrente ao negócio da Ponto Verde. Não tenho a menor dúvida de que o chef do Belcanto é um dos mais talentosos, criativos e competentes chefs do país. Adoro o Cantinho do Avillez, amo a Taberna e venero o Mini Bar. Mas a frequência com que Avillez recicla alguns dos seus pratos em vários dos seus restaurantes, sujeitando-os apenas a pequenas variações, está a retirar-lhe alguma da surpresa. Por exemplo, as suas azeitonas explosivas são fantásticas, mas servi-las no Café Lisboa, no Cantinho do Avillez, no Mini Bar, no Bairro do Avillez e agora também no Beco transforma-as quase no Marcelo Rebelo de Sousa da gastronomia – estão em todo o lado. E isso acontece também com os cornettos ou com os carabineiros com cinzas. Mas, como dizia o esquartejador, vamos por partes.

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    A ementa

    Aqui não há uma ementa. Há um único menu de degustação composto por 12 momentos que podem variar. Custa 130 euros por pessoa (à quinta-feira são €120, e ao balcão são €100 por pessoa) e inclui comida e espectáculo, mas não as bebidas. De resto, não tem mais escolhas. Paga logo ao fazer a reserva no site e a única pergunta que lhe fazem é se não gosta de algum ingrediente ou se tem alergias.

    A primeira coisa que lhe trazem para a mesa é uma rosa verdadeira. Pode cheirar, pode apreciar – mas também pode comer. Escondida entre as pétalas reais, está uma pétala falsa que deve ser retirada com uma pinça. Trata-se de uma rodela de maçã pink lady marinada em água de rosas e lichias. É fresca, doce e completamente surpreendente, mas a mistura da água de rosas com as lichias não é para mim. Já a minha querida Mulher Mistério gostou tanto que se agarrou sofregamente à pinça para tentar arrancar as outras pétalas.

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    A seguir, chegou a tal azeitona explosiva em cima de uma colher de amuse bouche. Por fora, é exactamente igual às outras azeitonas explosivas de Avillez: tem uma fina película que segura um fantástico sumo de azeitona no interior. Mas, por dentro, tem uma surpresa: um caroço feito de chocolate preto e cominhos. Se eu nunca tivesse provado as azeitonas explosivas de Avillez, teria achado a experiência perfeita; como já as provei em quase todos os seus restaurantes, achei menos surpreendente.

    Ainda estava eu a falar de azeitonas, quando me colocaram à frente umas pedras enigmáticas. Perguntei:

    – É para comer?

    – É, pois.

    – Mas é feito de quê?

    – Mistéeeerio….

    Enquanto a minha querida Mulher Mistério saltava da cadeira a achar que o empregado tinha pronunciado o seu nome de código, eu trinquei esta invenção como se estivesse a dar um salto para o abismo. A camada exterior é sólida e escorregadia porque é feita de manteiga de cacau. O interior é um líquido à base de óleo de fígado de bacalhau. Apesar de eu estar já a ver esse nariz a contorcer-se por causa do óleo de fígado de bacalhau, deixe-me dizer-lhe que não foi isso que fez deste o único prato de que não gostei ao longo de todo o jantar. O óleo é salgado e não demasiado intenso. O problema, para mim, foi a manteiga de cacau que aqui tinha um sabor demasiado enjoativo, quase a aproximar-se ao de um sabonete – não me pergunte quando foi a última vez que comi sabonete, mas a verdade é que tinha.

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    As entradas

    Ultrapassado esse contratempo, chegou a primeira fantástica surpresa da noite: um nigiri de salmão muitíssimo fresco, feito com uma base de merengue em vez de arroz. Que o salmão seria fresquíssimo e irrepreensível já eu desconfiava, agora aquela base de suspiro levemente adocicada é absolutamente divinal. E a consistência do suspiro, combinada com a suavidade do peixe, é simplesmente perfeita.

    Enquanto as bailarinas dançavam no palco, eu deliciava-me com o quinto prato da noite: um cornetto de sapateira que também não é uma novidade nas ementas de José Avillez. Eu já tinha provado esta maravilha com santola, com sapateira e até com atum. Este leva um recheio de sapateira desfiada, misturada com uma fantástica mousse de algas que ajuda a compor o sabor a mar. Por fora, o cone é feito com uma estaladiça massa wonton.

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    Mais um prato, mais uma surpresa incrível: uma pizza (calma, respire fundo, caro leitor em dieta…) feita com uma base estaladiça de alga nori (light, portanto) e uma fabulosa conjugação de atum fresco, ovas de truta, cebolinho, maionese de kimchi, um aveludado creme de abacate e umas discretas raspas de lima. É inacreditável como podemos ter todos os sabores, ligados de forma perfeita, num prato tão pequenino – e dietético, claro. A apresentação, em forma de pizza, faz deste prato um dos meus preferidos.

    As entradas acabam com um ceviche de camarão verdadeiramente delicioso. É feito com gambas da costa portuguesa e é uma autêntica revolução em relação ao ceviche peruano: o leite de tigre vem granizado (exactamente, em gelo, como aquelas bebidas que os mini-misteriosos tanto gostam de beber na praia), os grãos de milho vêm liofilizados (desidratados e mais leves) e depois ainda há flores comestíveis e mel de yuzo que lhe dão um toque adocicado.

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    O couvert 

    O quê? Achava que já tínhamos chegado ao fim? Nada disso, ainda nem sequer chegámos a meio. E é por isso que convém fazer uma pausa para comer o couvert, essa verdadeira instituição dos jantares fora de casa. O couvert do Beco é composto por três tipos de pão: um mais normal e discreto, outro de azeitonas e saboroso e um último flat bread estaladiço. A acompanhar, uma fantástica gema de ovo com trufa, uma boa manteiga de chouriço e uma última manteiga de tutano verdadeiramente incrível.

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    Os pratos principais 

    É verdade, só agora é que chegámos ao jantar a sério. E logo com mais uma reciclagem de José Avillez. Chama-se galinha dos ovos de prata e é uma versão mais em conta de um dos seus pratos mais famosos: a Horta da Galinha dos Ovos de Ouro, do Belcanto. Em vez de uma folha de ouro comestível, aqui servem-lhe uma folha de prata comestível que embrulha um ovo cozido a baixa temperatura e acompanhado com trufas, queijo e lulas finíssimas. Como eu sou um verdadeiro obcecado por trufas e um ainda mais verdadeiro obcecado por queijo, aspirei este prato à mesma velocidade que um papa-formigas aspira um carreiro à sua frente.

    E foi por isso que mal dei pela chegada do prato seguinte: um carabineiro acompanhado com espuma de lima e cinzas de alecrim. O facto de ser outra recriação de Avillez, não impede este de ser um prato verdadeiramente delicioso. O carabineiro vem cozinhado na perfeição. No prato, trazem-lhe o rabo do carabineiro por cima de uma espuma aveludada de lima – que substitui o limão habitualmente espremido – e acompanhado pelas cinzas de alecrim que têm uma textura única, igualzinha à das cinzas de papel. À parte, vem a cabeça inteira, com o interior quase líquido e com o mais incrível sabor a mar. 

    É claro que uma cabeça de carabineiro é para ser comida à mão, por isso trazem-lhe um pequeno toalhete para não sujar nada à sua volta. Logo a seguir vem um diamante para a mesa enquanto uma das artistas canta no palco a música “Diamonds are a Girl’s Best Friend”. A encenação é perfeita, com o prato onde é servido o diamante totalmente iluminado por baixo. Na verdade, trata-se de um sorvete de flor de sabugueiro que serve para limpar o palato antes da passagem para os pratos seguintes.

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    A carne 

    Não comece já a olhar para a balança: foram só dois os pratos de carne. O primeiro foi uma óptima barriga de leitão, com a pele estaladiça e a carne bem suculenta e macia, mas com um sabor ligeiramente exagerado a hortelã. Veio servida por cima de uma folha de alface e de uns fios de maionese de kimchi. A acompanhar trouxeram mais outra recriação de Avillez: umas finíssimas e estaladiças batatas fritas servidas dentro de um saco transparente, que parece de plástico mas é comestível. A experiência de devorar as batatas fritas e o saco, tudo ao mesmo tempo, já deve ter passado pela cabeça de várias crianças na praia.

    Para acabar, um fantástico pombo curado com lascas de trufa e foie gras, acompanhado por um suave puré de tupinambo (um hidrato de carbono muito mais dietético do que a batata e com um sabor ligeiramente parecido com o da alcachofra). A combinação da trufa com o foie gras costuma ser muito enjoativa, mas aqui estava simplesmente perfeita.

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    As sobremesas 

    Se alguém me falasse de tzatziki como sobremesa, eu daria um salto na cadeira: juntar pepino, alho e sal não é propriamente a melhor maneira de adoçar o final de uma refeição. No entanto, Avillez deixou o alho de parte e preparou uma sobremesa fresca com iogurte grego, maçã, pepino e pó de hortelã. Não é propriamente um pudim Abade de Priscos mas come-se bem para desenjoar dos 11 pratos anteriores.

    Com os cafés, trouxeram-nos um batom encarnado aberto. Não é propriamente para as senhoras retocarem a maquilhagem, é antes uma original e divertida forma de servir um gelado num cabaret. Na realidade, a ponta do batom é um fantástico sorvete de beterraba e morango assados. Bom, fresco e totalmente surpreendente.

    Se preferir chocolate, também há. Juntamente com o sorvete, chegou um tabuleiro de xadrez com duas peças. É a sobremesa final. Chama-se Xeque-mate e traz um peão de chocolate branco e um rei feito de chocolate preto. Seria o final perfeito. Só foi pena um detalhe: as peças não estavam em posição de xeque-mate.

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    As crianças 

    Só é permitida a entrada a maiores de 18 anos.

     

    O bom 

    O ambiente e a decoração.

    O mau 

    As pedras de fígado de bacalhau e a reciclagem de alguns pratos de vários restaurantes de Avillez.

    O óptimo 

    O serviço, a encenação e a comida. Em especial, o nigiri de salmão, a pizza de atum e o carabineiro.

     

    Um óptimo jantar para si onde quer que o Beco esteja,

    Ele

     

    fotos: bruno calado / beco; josé avillez; casal mistério

     

    Nota: Todas as despesas das visitas efetuadas pelo Casal Mistério a restaurantes, bares e hotéis são 100% suportadas pelo próprio Casal Mistério. Só assim é possível fazer uma crítica absolutamente isenta e imparcial. 

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    Beco Cabaret Gourmet
    Bairro do Avillez
    Rua Nova da Trindade, 18 Lisboa

    De quinta a sábado, das 19h30 às 2h
    Reserva obrigatória
    T: 210 939 234
    www.becocabaretgourmet.pt

     

    Um comentário em “a nossa aventura no beco cabaret gourmet, o restaurante mais surpreendente de josé avillez

    1. Quando acabei de ler o texto, achei que o “as peças não estavam em posição de xeque-mate” iria ser o MAU, mas isso deve-se à minha OCD. Fiquei desiludido, mas entendo 😉

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