– Boa noite, o que é que a menina vai comer?
Bastou esta singela e inocente frase para que a minha querida Mulher Mistério elegesse o serviço do Traça, no Porto, como o melhor serviço de restauração do país. Talvez da Europa. Eventualmente, do Mundo. Eu compreendo que, em plena ternura dos 40, Ela se sinta sensibilizada com o tratamento por “Menina”, mas, apesar da simpatia dos empregados, este fantástico restaurante no Largo de São Domingos tem outras coisas melhores do que o serviço.
O ambiente
A começar logo pelo próprio Largo de São Domingos. E por toda a Rua das Flores que começa ali e vai até aos Aliados. A antiga zona das ourivesarias está transformada numa das áreas mais bem recuperadas da cidade. Por fora, as fachadas antigas dos edifícios foram mantidas sem qualquer alteração. Por dentro estão a nascer fantásticas lojas, maravilhosas casas de chá, deliciosas chocolatarias e espectaculares restaurantes que se misturam na perfeição com os alfarrabistas ou com o encantador Museu das Marionetas.
Todo o ambiente nesta zona está mergulhado em animação e bom gosto, numa mistura de antigo e moderno que devia ser mostrada em cursos intensivos para todos os presidentes de câmara do país.
O Traça é só mais um exemplo desse bom gosto. O restaurante está dividido em três andares. À entrada, há uma mesa alta e antiga para dez pessoas, onde as cadeiras têm muito mais de engraçado do que de confortável. O chão é de mosaico velho e os candeeiros são de latão elegante. Nos andares de cima e de baixo a decoração é simples e sóbria. No entanto, nós apanhámos uma mesa de madeira que devia ter sido reciclada da esplanada: além de ser muito pequenina, tinha pés cruzados de metal, o que tornava difícil encaixar estas minhas pernas de Baryshnikov sem me contorcer todo.
Se conseguir um lugar no andar de cima, junto à janela e com uma mesa normal, com vista para o Largo de São Domingos, tem a noite ganha.
A ementa
Falar de bons carpaccios não é falar daquelas fatias congeladas e desenxabidas que compramos na Makro. Falar de carpaccios é falar de carne saborosa, suculenta e tenrinha que se desfaz na boca como se fosse paté. É falar de carne bem temperada, com detalhes surpreendentes que nos deixam com suores frios durante a noite só de pensar naquilo que acabámos de comer. Mas antes de falarmos de tudo isso, temos de fazer um voo de reconhecimento pelo…
…Couvert
Enquanto íamos olhando para a ementa com os olhos semicerrados de quem já tem idade para adormecer à noite com o livro em cima da barriga e os óculos na ponta do nariz, trouxeram-nos para a mesa um bom pão com o miolo muito macio e a côdea bem consistente. É daqueles pães que, de tão simples e certinhos, se tornam quase viciantes, obrigando-nos a picar pequenos bocados à medida que vamos conversando. E foi assim que o cesto colocado à nossa frente desapareceu num instante. É claro que, para isso, contribuiu também a muito agradável manteiga de ervas e as azeitonas grandes (€1,40 por pessoa) que podiam ser melhorzinhas se tivessem vindo temperadas.
As entradas
E eis-nos chegados a esse momento crucial da noite que deu pelo nome de carpaccio de lombo de veado (€12) – como não podia deixar de ser, mais uma escolha acertadíssima do elemento do casal que mais sabe de comida… Sim, estou a falar da Minha Querida Mulher Mistério que insiste em achincalhar-me permanentemente, escolhendo sempre melhores pratos do que eu. O que vale é que, numa desesperada inflexão de última hora, consegui convencê-la a dividir as entradas pelos dois.
E foi assim que consegui provar esta magnífica carne, ultra-saborosa e tão fininha que se desfazia ao servir no prato. Ainda por cima, vinha coberto por lascas de queijo semi-curado quase transparentes que encaracolavam de tão fininhas. Para acabar tudo em beleza, a carne era ainda salpicada por um divinal molho feito com vinagre balsâmico de Modena e por uns flocos de flor de sal preta que estava estaladiça ao trincar.
A seguir vieram umas lâminas de foie gras também muito fininhas, servidas em cima de uma maçã caramelizada e acompanhadas por umas boas torradas (€15). O doce da maçã joga lindamente com a intensidade do foie gras e resulta num prato óptimo, mas menos surpreendente do que o carpaccio. Eu segui a recomendação da ementa e acompanhei a entrada com um fantástico copo de Colheita Tardia Grandjó (€4,50) que lhe dá mais um toque adocicado para cortar a gordura excessiva do foie gras.
Os pratos principais
Nesta fase do jantar já Ela me fazia olhares lancinantes por causa do exagero de calorias consumidas. Mas, numa rebelião controlada, eu não cedi e mantive-me fiel à filosofia Tudo-Isto-Se-Queima-Com-Uma-Corridinha-Matinal. E foi assim que ousei pedir o fabuloso lombo de veado grelhado (€19). Antes que me pergunte porque é que um lombo de veado grelhado é calórico, devo esclarecer-lhe que este vem acompanhado com um enorme escalope de foie gras fresco e por umas quase perfeitas batatas-palha tão fininhas, tão fininhas que pareciam fios de cabelo do Donald Trump.
O único defeito era o excesso de gordura das batatas que ofuscava ligeiramente a textura leve e estaladiça. O prato ficou concluído com uma óptima mistura de cogumelos e umas pedras de flor de sal por cima do foie gras.
A minha querida Mulher Mistério pediu uns bons camarões com um óptimo molho de tomate e leite de coco, acompanhados por arroz branco (€14,50). Estavam muito bons, mas, para equilibrar um pouco a vitória do carpaccio, tenho de dizer que não chegavam nem de perto aos calcanhares de meu lombo de veado mal passado.
As sobremesas
Com mais cinco quilómetros de corrida nos tornozelos, senti-me à vontade para pedir ainda um óptimo gelado de Ferrero Rocher (€3,50), feito no restaurante, e persuadi-la a mandar vir uma tarte gelada de três chocolates (€4,50) que também não estava nada má.
As crianças
Não tem menu infantil, mas de segunda a sexta tem um menu do dia ao almoço: sopa, prato de peixe ou carne e café por €8,50.
O serviço
A empregada que tratava a minha querida Mulher Mistério por “Menina” era rápida, eficaz e muitíssimo simpática. Já a outra empregada que nos serviu estava claramente a começar a sua carreira e tinha alguma dificuldade em responder a perguntas simples como quais os vinhos vendidos a copo. No entanto, foi sempre muito simpática – mesmo quando nos trouxe água natural (€1,60 por meio litro) e, ao dizermos que preferíamos fresca, nos respondeu candidamente:
– Aaaaaah, agora já abri a água natural… Tem problema?
Nada que não se resolvesse com umas pedras de gelo.
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O bom
A decoração
O mau
A mesa apertada
O óptimo
A comida, em especial o carpaccio de veado
Um grande bem-haja para a minha Querida Menina Mistério onde quer que Ela esteja,
Ele
fotos: traça; casal mistério
Nota: Todas as despesas das visitas efetuadas pelo Casal Mistério a restaurantes, bares e hotéis são 100% suportadas pelo próprio Casal Mistério. Só assim é possível fazer uma crítica absolutamente isenta e imparcial.
Visito diariamente o vosso blog e aprecio bastante o seu conteúdo e o vosso sentido de humor. Entao quando os posts sao sobre o Porto, simplesmente adoro.
Uma pequena rectificação de uma portuense residente há muito em Lisboa: a Rua das Flores, onde os meus avós residiram mais de 60 anos, no prédio onde agora se encontra o Flores Village, não vai até aos Aliados.
Entre aquela rua e esta avenida, há a Praca Almeida Garrett, onde se encontra a Estacao de S. Bento e a Igreja dos Congregados e a Praca da Liberdade, onde se encontra a Estatua de D. Pedro lV.
Ate amanha!