Um evento destes exigia uma farda à altura. Vesti um parlamentar blazer azul escuro e uma militante gravata cor-de-laranja e meti-me no carro com uma única missão: fazer a crítica gastronómica do almoço de campanha do PSD, nos Bombeiros Voluntários do Dafundo, perto de Lisboa. Um desafio que nos foi lançado pela revista Sábado.
Cheguei uns desleixados sete minutos depois da hora marcada, porque o Google Maps me mandou para a Rua dos Bombeiros Voluntários do Dafundo e não para os Bombeiros Voluntários do Dafundo propriamente ditos – é verdade, não são no mesmo sítio. Encontrei um pequeno aglomerado de quatro pessoas, também de blazer azul escuro, em pé, à porta, à espera do cabeça-de-lista.
Esperei uns segundos antes de avançar e foi então que reparei que quase toda a gente chegava de camisa ou de t-shirt e ia religiosamente cumprimentar todos os homens do blazer.
Conclusão: se queria passar despercebido, era melhor trocar a gravata cor-de-laranja pelo autocolante na lapela. Tirei o blazer e a gravata e corri para a porta onde me colaram, junto ao coração, um pouco discreto semáforo com as inspiradoras palavras: “PSD – Primeiro Portugal – Marcar a Diferença”.
Dei o nome falso com que tinha reservado um lugar, paguei os 10 euros devidos e pedi uma factura, na esperança de que o partido da troika não vilipendiasse a saudosa memória do rigoroso Vítor Gaspar. A resposta que tive foi um incrédulo:
– …
– Com número de contribuinte, se for possível.
À minha frente, um jovem candidato a Pedro Passos Coelho olhava para mim como se eu lhe tivesse pedido uma réplica da Mona Lisa.
– Mas… eu…
Tudo o que o rapaz tinha era uma mesa vazia com uma lista dos nomes dos militantes inscritos. Nada de caixa registadora, nada de POS, nada de computadores, nada de todas aquelas modernices que o partido das facturas impôs na restauração portuguesa.
– Não é possível?
– Eu posso perguntar, mas…
– Então deixe estar.
– Não, eu já pergunto e vou lá dentro dizer-lhe alguma coisa.
O ambiente
O “lá dentro” era uma sala razoável com várias mesas compridas e uma pomposa mesa redonda no centro, religiosamente guardada para o candidato e sua comitiva de honra. Logo à entrada estavam duas ilhas de buffet e uma mesa comprida que aguardava pelas sobremesas.
Poucas pessoas estavam sentadas, muitas trocavam abraços com quem chegava. Na esperança de que ninguém me perguntasse a que concelhia pertencia, sentei-me discretamente no pior lugar possível: ao lado de uma coluna de onde saía em loop a pouco variada música “Paz, pão, povo e liberdade”. E foram estas quatro monótonas palavras que ouvi ininterruptamente entre as 12h40 e as 13h30. Como o sábio lema era repetido a cada 19 segundos, tive o raro privilégio de ouvir estas quatro palavras 158 vezes.
O meu único motivo de distracção era aproveitar os 19 segundos de intervalo para sorrir em direcção a cada militante que passava por mim, na esperança de o convencer a sentar-se ao meu lado. O primeiro casal não deu hipóteses. Seguiram-se dois militantes homens que passaram por mim sem dó nem piedade. Ainda me comovi com uma rapariga que perguntou para o colega:
– Ficamos aqui?
Mas o meu entusiasmo acabou rapidamente. O meu exílio só terminou quando os lugares vagos desapareceram. Os felizes contemplados foram dois jovens adultos, com um cabelo ondulado, à surfista, já com uns riscos brancos e o distinto e original blazer azul escuro e camisa branca, o que pode ser traduzido por Gente Importante e Superior da Concelhia de Oeiras (ou com aspirações a tal).
Olharam de lado para mim, fizeram um quase imperceptível aceno de cabeça e sentaram-se com tanta vontade de conviver comigo como de ver António Costa eleito primeiro-ministro por mais quatro anos. Limitaram-se a conversar um com o outro – ignorando os militantes de base presentes – e a cumprimentar calorosamente o organizador do almoço e presidente da concelhia de Oeiras.
Mesmo as mais directas tentativas de estabelecer contacto, eram tratadas com o devido desprezo. E no topo da lista esteve a minha:
– Vocês são de onde?
– Daqui.
– De Oeiras?
– Não, daqui, mesmo. [Tradução livre: cala-te e come.]
– Ah. Eu vim de Lisboa para apoiar.
– … [Silêncio absoluto para o caso de eu não ter percebido a primeira mensagem]
– Este ano, isto está difícil, não é?
– … [Novo silêncio enquanto olhava para o telemóvel]
Perante o desprezo absoluto, achei melhor parar com as tentativas de estabelecer contacto com a jovem nata da elite do Dafundo e remeter-me ao meu papel de comer e escrever.
O couvert
Mal me sentei à mesa, tinha à espera um cesto com duas bolas de pão rústico e algumas tostas grossas mais industriais, ao lado de uma taça com azeitonas tenrinhas e bem temperadas e de um menos interessante prato de triângulos de queijo Flamengo ainda com casca.
Para beber, uma enorme garrafa de água e um jarro com vinho tinto.
A água estava fresca e agradável, o vinho não sei bem – o facto de a temperatura do mesmo estar próxima da do Mar Morto no Verão levou-me a desistir depois do primeiro gole.
Pedi ao simpático empregado vinho branco. Trouxeram-me um jarro de vinho de pressão: não era um Chablis, mas pelo menos estava fresco.
Ao longo dos 50 minutos que esperei por Paulo Rangel, não vi mais comida.
Foi por isso com enorme entusiasmo que recebi a apoteótica chegada do candidato. A minha fome era tanta que, quando dei por mim, estava de braço em riste e dedos em V a gritar empolgadamente PSD! PSD!, enquanto os meus dois colegas de mesa batiam umas não muito efusivas palmas com as pontas dos dedos.
Depois da apoteose, sentei-me e preparei-me para a comida. Mas foi mesmo só preparação porque o almoço não foi servido antes de mais 30 longos minutos de discursos.
Perante a fome, entrei num estado de profunda letargia que só foi interrompido pelas constantes falhas do sistema de som e pela consequente loucura de desligar o ar condicionado com 33 º C na rua.
O buffet de frios
Às 14h, uma hora e meia depois da hora marcada, finalmente o buffet foi aberto e os militantes correram para as duas ilhas separadas por um finíssimo corredor com menos de um passo de largura. Como as duas ilhas estavam encostadas a uma parede, não havia saída possível que não fosse pelo mesmo minúsculo corredor através do qual toda a gente estava a entrar.
Quando dei por mim, estava a ser empurrado contra o balcão por um senhor de óculos escuros que queria passar. Ainda pensei que poderia ser uma estrela rock, mas era o presidente da distrital de Lisboa do partido, Pedro Pinto.
Só tive tempo de tirar uma primeira mistura de entradas e correr para o meu lugar.
O almoço possível foi uma razoável salada de grão, temperada de forma equilibrada e com grandes nacos de bacalhau; um simpático polvo salteado do buffet dos quentes, cortado em pedacinhos pequeninos, que não estava muito rijo nem muito quente; um bom feijão verde cortado em fios fininhos; e uma rodela de tomate fresca rija demais.
O buffet de quentes
Mal vi que o deputado dos óculos escuros estava entretido a mastigar, voltei a correr para a mesa para a segunda leva, agora na ilha de comidas quentes.
Voltei com umas febras de lombo de porco grelhado saborosas e umas batatas fritas em palitos que tinham tanto de moles como de grossas. Para compor, uma couve de caldo verde indiferente.
Só à terceira tentativa, consegui chegar aos restos de uma açorda de marisco onde sobravam duas solitárias gambas assadas e secas por cima de uma açorda razoável, mas já sem vestígios de marisco no interior. Também consegui provar um bacalhau com natas que poderia facilmente ver o nome trocado para batata com natas tal era a escassez de bacalhau no interior.
O buffet de sobremesas
Mais uma mesa grande coberta com vários pratos, mais uma enchente de gente faminta à volta. Com medo de voltar a ser atropelado pelo deputado dos óculos escuros, resolvi esperar que o ataque aos doces acalmasse. E só quando vi cada um dos meus amigos do blazer azul voltar para a mesa com um generoso prato com mais de quatro doces, bolos, pudins e mousses é que avancei.
Optei por uma salada de frutas com a fruta num avançado estado de madureza – já a caminhar, em passos largos, para a putrefacção – e uma mousse de chocolate densa mas com um chocolate mediano.
Quando acabei a minha mousse, percebi que já eram 15h. Tinham passado umas longas duas horas e meia de almoço numa normal quarta-feira de trabalho. Um detalhe que não parecia preocupar qualquer uma das dezenas de pessoas que continuava a comer e a conversar alegremente, como se o seu dia de trabalho dependesse apenas da agenda de Paulo Rangel.
Levantei-me e dirigi-me para a porta da rua. Foi então que voltei a encontrar a mesa da recepção. Sentada, estava só uma jovem militante a debater-se com uma enorme febra de porco. Nada de aspirante a Pedro Passos Coelho, nada de caixa registadora, nada da factura prometida. A memória de Vítor Gaspar já não está no meio de nós.
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Ele
fotos: casal mistério
Vocês são incríveis 🙂 obrigada pelas gargalhadas.
Ri me tanto tanto tanto com a vossa descrição!!!!!