Pronto: aconteceu aquilo que mais temia, o Casal Mistério saltou para o lado de lá da ténue linha que separa a boa disposição da loucura. E vai escrever sobre literatura (rima e é verdade). Mais grave ainda: vai escrever sobre Almeida Garrett. Vamos fazer um passeio sobre uma das obras mais famosas do escritor: Viagens na Minha Terra.
Calma… não mude já para o blog da Lídia Jorge. O melhor é explicarmos esta loucura passageira. A culpa é do fantástico gastropub Casa Garrett, no Porto. Aberto há pouco mais de um ano, o restaurante tem um dos conceitos mais originais que já encontrámos: a ementa foi toda inspirada no livro do romancista do século XIX. Cada prato é de uma região diferente do país e as sugestões percorrem grande parte das Viagens na Minha Terra. Há, por exemplo, os chips de batata doce do Algarve, o paté de tremoço de Lisboa, as azeitonas com alho e poejo do Alentejo, o lombo de atum braseado dos Açores ou a tigelada de alheira de Trás-os-Montes.
Mas antes de começar a aguar com a comida, vale a pena conhecer o espaço.
O ambiente
Primeiro convém explicar o que é um gastropub. Basicamente, é um bar onde se pode comer tão bem como num restaurante. Tanto pode lá ir beber um copo, como acompanhar a bebida com uns petiscos ou então jantar como gente grande. É claro que nós somos muito grandes e, por isso, não perdemos uma boa oportunidade para jantar.
O espaço faz lembrar um bar de vinhos, com pipas na sala, prateleiras feitas com caixas de vinho e um ambiente algures entre o acolhedor e o moderno: só o lustre enorme decorado com copos de pé alto virados ao contrário pode dar-lhe bem uma ideia do que o espera aqui.
Claro que não podiam faltar vários livros de Almeida Garrett espalhados por todo o lado e que podem ser usados em caso de emergência se a conversa à mesa não estiver muito estimulante.
Nós fomos jantar com a vasta Família Mistério e ocupámos uma mesa de canto, com um confortável sofá em L onde se sentou a ala feminina da família – os cavalheiros mistério ocuparam as cadeiras de madeira ligeiramente menos convidativas.
A ementa
A parte das Viagens na Minha Terra já está explicada, por isso posso deixar a literatura para a RTP2. Agora vamos falar de comida. A ementa está dividida entre pratos para debicar (uma espécie de couvert), para picar (petiscos leves), para comer e as “criações mais contundentes”.
Nós começámos com um cesto de pão quente e estaladiço com a côdea macia (€1); um cubo de azeite temperado com ervas e um dente de alho (€1,5) que estava óptimo, saboroso e bem equilibrado; umas azeitonas verdes rasgadas e carnudas com alho e poejo (€1,50); um paté de tremoço supreendente, cremoso e ligeiramente picante (€1,50); e finalmente uns ovinhos de codorniz cozidos que infelizmente estavam frios e secos (não foram feitos no momento) mas que eram salvos pela óptima maionese de mostarda e mel que vinha a acompanhar (€0,50 cada ovo).
Como pode imaginar, só o couvert já nos deixou quase jantados. Mas, como uma Família Mistério não desiste facilmente, seguimos de peito erguido e abdómen dilatado para a etapa seguinte. A transição para os petiscos mais substanciais deu-se com uns chips de batata doce (€3) fininhos e bem estaladiços, sem ponta de gordura a mais, salpicados com sal de alecrim e acompanhados com a mesma maionese de mostarda e mel que deixou as crianças à beira de um ataque de ansiedade sôfrega.
A seguir, pedimos um espectacular tártaro de atum fresco (€6) apresentado como se fosse um bife tártaro: cortado em cubinhos minúsculos e temperado com alcaparras, cebola roxa, sumo de limão e coentros. Por cima, trazia ainda uma gema de ovo de codorniz crua que se misturava com o peixe altamente saboroso. Ao lado vinham umas tostas de pão salpicadas de azeite.
Antes de passarmos para a carne, ainda provámos o lombo de atum braseado (cozinhado demais) servido por cima de um chutney de tomate que abafava ligeiramente o sabor do peixe (€10). A acompanhar vinham umas folhas de agrião com limão e flor de sal.
O prato seguinte foi uma tigelada de alheira de Mirandela (€6) com chouriço e grelos. A alheira não estava nada má, mas o ovo escalfado que vinha por cima trazia a gema muito cozida e a clara quase crua e transparente, o que pode ser uma hecatombe para bocas mais sensíveis.
Esta odisseia gastronómica só acabou com um bife de novilho mal passado (€12) com ovo estrelado, batata frita e molho de manteiga e alho.
As sobremesas
Quando falo de odisseia terminada, estou evidentemente a excluir as sobremesas. Depois de algum debate, a Família Mistério aprovou por unanimidade a partilha de dois gelados: um de pastel de nata, com massa folhada e tudo (€4), e outro de ovos moles, com bolacha de amêndoa e fios de ovos por cima (€4). Apesar de serem surpreendentes e de o de pastel de nata saber mesmo a pastel de nata, são doces demais até para mim.
O serviço
Foi sempre simpático, rápido e agradável – e olhe que não é fácil servir uma mesa com quatro crianças que adoram comer. Mais importante ainda, foi de uma honestidade que não é assim tão frequente nos dias que correm: a conta veio com um valor mais alto do que era suposto e, apesar de eu não ter reparado, foi o empregado que voltou para trás para me avisar e pedir desculpa. No meio da agradável surpresa, mal reparava num dos detalhes mais deliciosos de todos: a conta veio dentro do livro O Arco de Sant’Ana – de Almeida Garrett, claro.
As crianças
Tem um prego (€9,50) e uma francesinha (€8,50), mas não tem menu infantil. Ao almoço, tem um menu executivo com sopa, prato, bebida e café por €8.
O bom
A originalidade do conceito e do espaço
O mau
O ovo escalfado com a clara crua
O óptimo
O tártaro de atum e os chips de batata doce com maionese de mostarda e mel
Um óptimo jantar para si onde quer que o Almeida Garrett esteja,
Ele
fotos: casa garrett; casal mistério
Nota: Todas as despesas das visitas efetuadas pelo Casal Mistério a restaurantes, bares e hotéis são 100% suportadas pelo próprio Casal Mistério. Só assim é possível fazer uma crítica absolutamente isenta e imparcial.
E quanta gastronomia deliciosa temos por cá, pelas viagens da/na nossa terra.