Não há coisa mais stressante do que ir jantar fora com amigos. Primeiro, é o problema da gestão de expectativas: uns são fanáticos por japonês, outros são alérgicos a arroz; uns adoram sítios animados, outros têm enxaquecas com o barulho de uma borboleta; uns querem vinho branco, outros até fazem tratamentos de spa com vinho tinto.
Depois, é o problema da gestão de segredos: é pacífico passar um tête-a-tête inteiro de telemóvel em punho a tirar notas sobre a refeição como se fôssemos dois pós-adolescentes que comunicam entre si exclusivamente via WhatsApp; mas é muito mais suspeito ter um jantar de amigos desde que arranjámos uma vida dupla – como ninguém sabe que à noite nos transformamos em perigosos lobisomens da restauração, é preciso tirar notas discretamente, provar os pratos dos outros inconvenientemente e impor restaurantes despudoradamente.
Foi isso que aconteceu quando nos lembrámos de ir ao novo Gulli, que abriu há poucas semanas no Mercado da Vila, em Cascais.
– Mas ir agora para Cascais?!
– Fazer 30 quilómetros de auto-estrada para ir jantar fora?!
É isso! Só bocas desagradáveis. E foi neste ambiente hostil que chegámos a Cascais.
O ambiente
O Gulli era um simpático restaurante italiano, com uma vista extraordinária para a baía de Cascais, no Hotel Villa Albatroz. Tinha aquela que era uma das melhores esplanadas da zona. Agora está num espaço remodelado dentro do Mercado da Vila, em Cascais. A sala é em tons de verde (podia ser pior…) e tem uns sofás estampados com umas folhas de palmeira (aqui era difícil ser pior…). Tirando estes dois detalhes – e o facto de ter uma acústica que transforma dez mesas a falar aos gritos num concerto dos Iron Maden –, não está nada mal: as paredes são em madeira escura, os candeeiros são cinzentos e existe uma espécie de uma horta vertical na parede do fundo.
Do lado de fora, há uma esplanada que dá para as bancas de legumes do mercado. O problema é que só há mercado de legumes à quarta e sábado, à hora do almoço. Em todos os outros dias, se não houver eventos no mercado, vai jantar à frente de um enorme espaço vazio.
A ementa
Quando se senta, trazem-lhe uma óptima focaccia, leve, fofinha e húmida ao ponto de se sentir bem o azeite no pão. Estava tão boa que desapareceu em poucos segundos. É claro que pedimos um reforço, mas rapidamente percebemos que não ia ser fácil. Esperámos. Voltámos a pedir. Esperámos. E desistimos. Antes já tínhamos desistido também de pedir uma imperial: tinha ficado por trazer. O que vale é que entretanto chegou o vinho branco e as…
…entradas
Mais um momento de imposição misteriosa. Os nossos queridos amigos misteriosos queriam pedir uma entrada para cada um, eu queria dividir tudo – para poder provar TUDO. Eles resistiram, eu insisti. Eles desistiram, e eu fiz uma triste figura. São as figuras a que tem de se sujeitar um pobre crítico mistério.
Para a mesa veio uma deliciosa caprese in famiglia (€9,80) que é uma originalíssima forma de apresentar a salada caprese. Num copo vêm uns tomatinhos cherry hiper-deliciosos temperados com um óptimo molho pesto e noutro copo chegam uns cubos de mozarela temperada com o mesmo molho. Assim pode comer separado ou juntar os dois em cima de umas fantásticas tostas grelhadas com azeite e alho. Foi claramente o melhor da noite.
Ao mesmo tempo, foi servida uma boa tempura de camarão tigre selvagem com lima e molho tártaro (€9,80) e uma óptima trilogia del mare (€12,90) que são três petiscos: um tártaro de atum e maçã verde muitíssimo fresco; um óptimo maki de bacalhau e camarão selvagem feito com uma massa estaladiça e que vem por cima de um molho pesto; e uma mousse razoável de salmão, gengibre e estragão. Para terminar este pequeno banquete de entradas, veio o market fashion (€9,80) que podia perfeitamente ser servido como um prato principal: é mais uma trilogia feita de uma bruschetta agridoce com queijo chèvre quente por cima, um óptimo gaspacho com um ravioli crocante e um coração de alcachofra (que infelizmente parecia de lata) feito à Parmigiana. Tirando o detalhe da alcachofra, estava tudo fantástico.
Os pratos principais
Até aqui, a comida estava óptima e o serviço estava razoável. Mas isso foi até aqui. Com os pratos principais, começou o caos. Primeiro chegou a pizza prosciutto (€8,50) que, no fundo, é feita com fiambre. Cinco minutos depois, caíram na mesa mais dois pratos e o último só chegou dez longos minutos a seguir, quando a pizza já ia para lá de metade.
Quase todas as massas têm duas características muito vincadas: são em quantidades que dão à vontade para dividir por dois e têm um excesso de natas que as torna ligeiramente enjoativas. De resto, têm bons ingredientes. A minha massa era um tortelli fresco, e muitíssimo bem cozido, recheado com abóbora e foie gras (€13,90). O problema é o molho, demasiado enjoativo, feito com rúcula, Parmigiano Reggiano, requeijão de cabra, mel, redução balsâmica de framboesa e ainda trufa branca. São ingredientes a mais para um único molho. Bons ingredientes, mas ingredientes a mais.
Ela, coitada, teve a sorte de receber o último prato a chegar à mesa. Era um tortellacci di noci (€12,90) que é uma massa fresca mais alta do que o tortelli e que vem recheada com nozes, Parmigiano Reggiano e requeijão de Serpa. O molho era de salmão fumado, vodka e estragão. Ela gostou mas também não conseguiu acabar (coisa rara na minha querida Mulher Mistério).
As sobremesas
Mais uma etapa, mais um despiste do serviço. Desta vez, decidimos dividir um affogato cioccolato (€4,50), que é um gelado de chocolate mergulhado num copo de café e whisky, e um gelado de Gin Mare com basílico e toranja tónica (€6,90). Infelizmente, acabámos por dividir só o affogato, que não estava nada mal. O gelado de Gin Mare chegou à mesa mais de dez minutos depois do seu companheiro de pedido, quando nós já tínhamos acabado de jantar. A empregada pediu desculpa e ofereceu a sobremesa. Mas eu já só pensava no café.
O serviço
Se o serviço durante o jantar foi caótico, a chegada foi um oráculo. Tínhamos reserva. Ficámos à entrada, à espera que alguém fosse ter connosco. Esperámos… e vimos uma empregada passar por nós… esperámos… e vimos outra empregada passar por nós… esperámos… e desistimos de esperar. Chamámos uma das empregadas que tinham passado por nós:
– Desculpe, nós temos uma reserva para agora.
– Ah! As reservas são com a minha colega. É aquela que está lá dentro com uma camisa azul…
– Mas… será que a pode chamar ou quer que vá eu lá dentro falar com ela?
– Deixe estar, eu vou…
– Muito obrigado pela disponibilidade.
A senhora da camisa azul chegou ao fim de 12 longos minutos de espera. (Ah, esqueci-me de dizer: a esta hora o restaurante ainda estava praticamente vazio).
– Boa noite, está à espera de mesa? Podia ter-me mandado chamar…
Depois desta simpática forma de dizer que a culpa pela espera tinha sido minha, achei por bem não responder. A minha única saída foi a resignação.
As crianças
De dia, o espaço é óptimo para os miúdos. À noite, é sobretudo frequentado por grupos de amigos pré-quarentões. A ementa não tem um menu infantil, mas tem várias pizzas a partir dos €6,90.
O bom
A esplanada em dias de mercado
O mau
O serviço
O óptimo
As entradas
Um óptimo fim-de-semana para si onde quer que esteja,
Ele
fotos: gulli; mercado da vila
Estes são os mesmos que têm um restaurante perto da Arrifana. Vale muito a pena.
Espero que não o tenham fechado…