Não sei bem porquê, mas depois de ver o Éder aniquilar as esperanças francesas, num gélido Stade de France, no domingo, achei que o Cruel era o melhor restaurante para se jantar esta semana.
Este novo restaurante da baixa do Porto, aberto há menos de um ano, é um sítio fantástico para comemorar com os amigos um feito futebolístico histórico. Não só por causa do magnífico nome (que, ainda por cima, se escreve da mesma forma em português e em francês), nem sequer por ter uma ementa perfeita para dividir uns petiscos deliciosos, nem ainda por ter o mesmo chef do fantástico Cantina 32 (pode conhecer aqui o melhor cheesecake da cidade), mas, acima de tudo, por causa da flor eléctrica.
E é aqui que temos de fazer uma pequena pausa: a flor eléctrica dá pelo nome de Sichuan e merece ser apresentada a todo e qualquer ser humano que goste de comer. Trata-se de uma flor comestível que, ao ser trincada, provoca uma dormência na boca, dando a sensação de quase paralesia. O que acontece é que ao provar os alimentos, depois de mastigar esta flor, os sabores vão explodir na sua boca, alterando radicalmente o paladar. A sensação é única e absolutamente imperdível. Mas, antes de continuarmos nesta senda restaurante-candomblé, convém falar um bocadinho do espaço.
O ambiente
Nós tivemos essa requintada sorte de apanhar uma despedida de solteira que inundou o restaurante de bandeletes com orelhas de coelhinhas da Playboy e gritinhos entusiasmados cada vez que passava um homem desacompanhado com menos de 72 anos e mais de 45 quilos. Por isso, foi difícil reparar na simpática esplanada com mesas e cadeiras de madeira, nas elegantes paredes de cimento afagado do interior ou nas originais molduras penduradas sem quadros.
O ambiente é descontraído, discreto e moderno. Em alguns casos, talvez moderno demais: por exemplo, há duas casas-de-banho, mas não estão identificadas para homens ou para mulheres. Noutros casos, talvez descontraído demais: numa das casas-de-banho, havia rolos de papel higiénico vazios espalhados pelo chão.
A ementa
E é chegada a hora de falar da comida – e da flor eléctrica. A ementa está dividida em três áreas: uma medrosa (mais tradicional), uma cautelosa (intermédia) e outra cruel (com a flor eléctrica e outras ousadias). Pode pedir entradas, pratos principais ou sobremesas de qualquer uma destas ementas. E também pode dividir. Foi o que nós fizemos, claro – tudo da parte cruel da ementa.
O couvert
Antes da flor eléctrica, trouxeram-nos o couvert (€1,50 por pessoa) com dois tipos de pão cortados às fatias: um rústico e outro escuro, com sementes. A acompanhar vinham umas azeitonas verdes temperadas, ligeiramente picantes, que estavam tenrinhas e saborosas, e duas manteigas: uma normal com ervas, que não era nada de especial, e outra com piri-piri que era bastante melhor.
Os petiscos
Finalmente, vamos falar da flor eléctrica? Não, senhor: há que seguir respeitosamente a ordem do jantar e, já agora, tentar manter esta expectativa típica de aspirante a Hitchcock.
Os petiscos começaram com umas surpreendentes Bolas de Berlim (€6). E, quando digo surpreendentes, é para abrir as goelas de espanto. A massa é igual à das tradicionais bolas de praia: leve e com um pouco de gordura a mais. Mas o recheio não tem nada a ver com aquele creme de pasteleiro que tamanhas alegrias deu a tantas crianças cobertas de areia. O que vem para a mesa são quatro mini-Bolas de Berlim pousadas em cima de uma óptima e ultra-leve mousse de wasabi que se torna muitíssimo suave. No recheio, as bolas levam uma pasta de salmão que liga lindamente com a mousse. Se decidir comer as quatro mini-bolas sozinho, vai seguramente achar esta entrada um enjoo, mas se as partilhar tem aqui um óptimo e surpreendente prato de Verão.
O que pedimos a seguir foi o tão esperado carpaccio de novilho com a tal flor eléctrica. Mas… ainda não é desta. Antes de qualquer flor, a simpática empregada trouxe-nos um cumprimento do chef. Tratava-se de um óptimo paté de salmão com cebolinho que combinava lindamente com o pão.
E, agora sim, a flor eléctrica. O carpaccio (€5,50) vem servido em finas fatias de carne salpicadas com umas folhas de rúcula, queijo parmesão ralado pequenino demais para o meu gosto e um delicado e bem equilibrado molho pesto. Até aqui tudo normal. A surpresa está nas duas colheres de sobremesa que vêm ao lado e que trazem mais uma fatia de carpaccio com a tal flor eléctrica por cima.
Ao trazer a comida, a empregada explicou cuidadosa e pacientemente todo o processo de degustação do carpaccio. Primeiro, deveríamos provar um pouco de carpaccio do prato e apreciar o sabor. Depois, colocar o carpaccio misturado com a flor na boca e mastigar bem – a sensação de dormência só se nota se a flor for mastigada durante uns segundos. E finalmente, já com a boca adormecida, voltar a provar o carpaccio para sentir a diferença.
Enquanto eu seguia meticulosamente todos os conselhos da empregada, a minha querida Mulher Mistério engolia a flor com a mesma rapidez com que o Winnie The Pooh vira um pote de mel. Resultado: enquanto eu senti primeiro a boca a ser inundada por um sabor a dentista e depois a ficar anestesiada, a minha prezada e ligeiramente sôfrega Mulher Mistério ficou na mesma. O que é impressionante é como essa anestesia ligeiramente incómoda altera radicalmente os sabores do carpaccio, tranformando uma carne à partida desinteressante e pouco temperada, numa combinação de sabores intensos e bem presentes.
O que salvou a minha querida Ela é que, a seguir ao carpaccio, pedimos um tártaro de novilho (€13) ou o autodenominado Novilho Crú(el), apresentado com um trocadilho que me fez lembrar um título do jornal A Bola nos anos 90. Felizmente, o tártaro traz também uma flor eléctrica por cima da carne cortada fininha à faca e ao lado de uma gema de ovo. À parte, trouxeram uns pickles, uma salada de rúcula e folhas de jambu e umas tostas fininhas e muito agradáveis não fosse uma delas vir queimada e praticamente incomestível. Depois de muito esforço para mastigar a comida antes de engolir, Ela conseguiu finalmente sentir a dormência e a diferença de sabores, como se as papilas gustativas se escancarassem aos sabores que normalmente passam despercebidos.
Para acabar, veio a única desilusão da noite: uns ovos rotos (€6) passados demais, com a gema sólida, com chouriço e “trompetas da morte”, umas batatas assadas que ocupavam 75% do prato.
A sobremesa
Quando digo acabar, estou evidentemente a excluir a sobremesa, uma torre de chocolate (€8) que pode ser medrosa, cautelosa ou cruel, dependendo da dimensão da sua fome. Nós pedimos a versão medrosa que já é uma enorme fatia de bolo de chocolate (sobrou metade e dividimos pelos dois) feita com quatro diferentes camadas de chocolate e cobertas com um chocolate com 70% de cacau – indicado só para hooligans do chocolate.
Também há um tiramisú de lima com óptimo aspecto (€4), mas que já não tivemos espaço abdominal disponível para experimentar.
O serviço
Foi sempre simpático, descontraído e muitíssimo rápido. Além disso, tem atenção a um detalhe que nem sempre se encontra nos restaurantes com comida para dividir: os petiscos são trazidos um a um para não sobrecarregar a mesa e não o deixar agarrado aos talheres com o nível de stress do Cristiano Ronaldo na final do Europeu de futebol. Um único reparo: a ementa vinha com um resto de comida agarrada ao papel, o que não é a sensação mais agradável do mundo.
As crianças
Não tem menu infantil.
O óptimo
O carpaccio com flor eléctrica e as bolas de Berlim com espuma de wasabi
O mau
Os ovos rotos
O péssimo
O bocado de comida agarrado à ementa
Um óptimo jantar para si onde quer que a crueldade esteja,
Ele
fotos: cruel
Nota: Todas as despesas das visitas efetuadas pelo Casal Mistério a restaurantes, bares e hotéis são 100% suportadas pelo próprio Casal Mistério. Só assim é possível fazer uma crítica absolutamente isenta e imparcial.
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Cruel
22 2010326
924400259
Rua da Picaria 86-86A, Baixa, Porto
Fecha ao domingo e à segunda-feira ao almoço
Conclusão: nada de especial face a tanta coisa boa que há pela cidade do Porto.
Desta vez Voçês desiludiram-me ao descer tão baixo. Acontece aos melhores!